terça-feira, 11 de maio de 2021


 Uma leitura de Amadeu Baptista

Estrada de Cinza’ é o novo livro de António Ferra, com a chancela das Edições Eufeme. Acaba de sair. O livro constitui-se por seis painéis poéticos, a que nem sequer falta o regular envio para a poesia medieva portuguesa (capítulos 2 e 3) (como que a lembrar-nos de onde vimos e que repositório de materiais temos armazenados), chamada à puridade para retratar e interpretar as anacronias do dizer contemporâneo, que Ferra mobiliza (por ofício) para fixar (e detalhar) as assincronias sistemáticas do nosso tempo, o seu absurdo, a sua contraproducente fiabilidade. Esta escrita revela que tudo está em jogo na arte dos versos, porque essa mesma arte se sustenta do que, inexoravelmente, nos sitia, não só enquanto passivos criadores do nosso tempo, mas também como activos personagens da nossa história, do nosso desempenho perante ela e, sobretudo, perante a nossa vida e a fracção paradoxal que lhe é inerente: que, amiúde, a dá como sem sentido na ampla geografia das nossas ânsias. É esta uma poesia sem subterfúgios, com a coerência de quem nada tem a perder e que aposta forte num Expressionismo dedutivo (cabe ao leitor exercer esse exercício, o autor insta a que assim seja), que amplia as formulações detectadas num dos seus livros anteriores, ‘Clara em Castelo’, de 2020 (Douda Correria) – e por isso mesmo se assume como testemunho da deformação com que o real nos define e circunscreve. O que nos versos deste livro se lê articula-se e situa-se muito para além do pendor satírico a que Ferra nos habituou, são versos de activa e prolífica derisão que tudo interpretam e interpenetram, desde as mais singulares e longínquas experiências que o poeta viveu até ao jogo erótico com que se confrontou, passando, obviamente, pelo fluir ronceiro do quotidiano a que nem sempre sabemos o que opor, tornando-nos seus alheados cúmplices, mas a que o poeta contrapõe a sua poética, a sua releitura atenta e produtiva, a sua eficácia criativa. Uma construção que, verso a verso, e poema a poema, depura a ‘realidade’ vigente, sopesando-a e propondo a actualização (modificando-a, portanto) de uma idiossincrasia que, refém da alienação, reclama que o poeta lhe desmonte os absurdos, atribuindo-lhe uma outra ordem de análise e reflexão. Confiamos no que nos é proposto nesta verificação da ilógica sucessão dos dias, nesta ‘estrada de cinza’ que temos que palmilhar com todos os sentidos despertos, sob pena de, se não o fizermos, ser ainda maior e mais devastadora a desolação e mais terrível o poder de todas e de cada uma das nossas angústias. ‘Estrada de Cinza’, de António Ferra: um livro a ler e a manter por perto, enquanto nos pudermos reconhecer uns aos outros, bem como à poesia que nestas páginas tão magnificamente nos nomeia.
Amadeu Baptista, Maria Cabral e 14 outras pessoas
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