segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

literatura para crianças

dois olhos de vidro


O Francisco gostava muito que a tia Rosa lhe contasse histórias de quando ela era menina. Como a da boneca chamada Mimi.

Era uma boneca de louça, daquelas que se podiam partir. Não era como as de agora, de plástico ou de borracha. Tinha um vestido cor-de-rosa, com florinhas azuis e folhos brancos na gola e na bainha. Quando estava sentada, ficava de braços abertos, de polegares espetados, a olhar para longe com uns olhos azuis brilhantes, debaixo de pestanas muito grandes e direitas.
Que lindos olhos ela tinha!

A tia Rosa era, então, uma menina de dez anos, que gostava de compreender as coisas mais simples que encontrava – o ruído das cigarras no Verão, os carreiros de formigas, o brilho dos pirilampos à noite.

Um dia, encantada com os olhos da Mimi, quis ver como eles eram feitos. Acabou por tirá-los para fora. Eram dois olhos azuis de vidro ligados entre si por um arame muito fino.
Estragar a boneca foi fácil, compô-la é que era mais difícil. E lá ficou a boneca à espera que alguém a levasse ao hospital.

Já sem aqueles olhos que lhe davam o encanto, foi sendo esquecida.
A Rosa só deu verdadeiramente pela falta da boneca, quando a família se mudou para um andar, nuns prédios novos, no coração da cidade, deixando para trás o quintal grande onde os pássaros lhe faziam companhia.

Acabou por perder a Mimi. Ficou muito triste, porque mesmo que arranjasse outra, nunca seria como a sua Mimi com aqueles olhos lindos.
Mas conservou sempre consigo aquele par de olhos azuis unidos por um araminho de dois centímetros.
A tia Rosa, que hoje também já é mãe de filhos crescidos – diz o Francisco - ainda agora os guarda dentro de uma caixa de cartão. De vez em quando, destapa a caixa e fica a olhá-los, sonhando com aqueles passeios que dava com ela ao colo, pelo quintal fora, observando carreiros de formigas e ouvindo um melro que as visitava.
Ainda hoje aqueles olhos de vidro lhe fazem companhia e ela continua a guardá-los, porque acha que um dia a boneca pode aparecer.
inédito