skip to main |
skip to sidebar
Sobre a minha poesia
Sobre a minha poesia - por Henrique Manuel Bento Fialho
próximo convidado de Diga 33 –
Poesia no Teatro. Dia 27, às 21h30, na sala
Estúdio do Teatro da Rainha.
Dois livros bastante diferentes um do outro, publicados ambos este ano:
“A Poesia Ri Unida” (Eufeme, Maio de 2022) e “Lengas e Narrativas”
(Edições Húmus, Junho de 2022). Comecemos pelo primeiro. Tal como o
título indica, num humor desimportantizante característico do autor,
trata-se de uma reunião, não da obra anteriormente
editada em livro, mas de poemas dispersos por revistas publicadas entre
2009 e 2021. A excepção é um inédito
intitulado “Dores”, poema pungente em que o mal-estar contagioso da
actualidade vem à tona com fúria desmedida: «e eu sem potência para
apagar filhos da puta» (p. 37). Não é comum nesta poesia temperaturas
coléricas tão elevadas, sendo mais frequente o recurso ao riso enquanto
sabotagem da realidade decadente e de
um quotidiano pulverizado de personagens por vezes picarescas,
noutras ocasiões risíveis, amiudadamente
desvalidas. Portanto, a poesia que ri neste volume transborda os
domínios da ironia e da sátira reconhecíveis
noutros momentos da obra de António Ferra (n. 1947). Mantém-se, no
geral, a paisagem suburbana enquanto
palco privilegiado das observações do sujeito poético, mergulhado num
“modo funcionário de viver” onde
recolhe quadros de uma actualidade estrangeirada. O teatro é o da
«tirania / num campo de refugiados
suburbanos» (p. 11), por vezes em poemas sequenciais que retratam
com linguagem militantemente coloquial
«o constrangimento dos sonhos, / a severidade das sombras» (p. 48).
Dá-se especial atenção nestes poemas aos pobres, aos excluídos, aos
exilados, aos humilhados e ofendidos, a essa
massa de gente infinda usada e usurpada pelas forças que dessa gente se
servem esgotando-a, tornando-a
impotente e incapaz. É curioso, mais ainda pela dispersão inerente ao
conjunto, como em diversos destes poemas
surge essa imagem de fraqueza que vai do sentimento de «culpa de não
combater» (p. 11) à falta de «voz para gritar a injustiça» (p. 48),
desembocando no apelo quase desesperado do poema “Contaminação”:
«não feches o
riso / que se abre nas tuas mãos abertas, / não feches o grito de revolta /
quando a janela se abre aos odores de um
fogo extinto» (p. 52). Uma dúvida a esclarecer: o riso é arma ao serviço
da revolta ou solução para a impotência?
Bem diferente, em todos os aspectos, é o segundo livro acima aludido,
introduzido por uma explicação prévia à
laia de prefácio: «Trata-se de poemas com deliberada intenção de trazer
à luz os mais sombrios actos criativos —
e caritativos — das palavras, dançando ao ritmo cardíaco dos versos
estampados, não negando, todavia, a forte
influência de uma corrente barroca, e neoclássica, surrealmente
presente nos critérios de recolecção dos versos
que integram a antologia “lengas e narrativas”». Neste caso, o espaço de
representação confunde-se com a pura
experimentação formal. Mais maneiristas do que barrocos, estes poemas
afirmam-se pelos desequilíbrios, pelos
exageros expressivos, aqui grotescos, acolá burlescos, gozando de uma
variedade (in)formal que vai da
redondilha à canção. São experiências lúdicas com palavras, a linguagem
poética cedendo ao gozo dos efeitos
fonéticos — «a salsugem dos barcos / a penugem dos braços»
— e polissémicos, jogo que não prescinde do seu
inventário intensivo de caricaturas: «o pobre de porshe» (p. 10),
«o rico sem cheta» (p. 12), «os ais obscenos / de suínos urbanos» (p. 31),
«o mendigo enganado / o bardo e o frade / de cotão no umbigo / e
espinho do cardo // o carneiro inchado / a donzela porreira / de seio
fanado / e liga de freira // o cilício de nastro / o amante filtrado / o
cu de alabastro / da alcoviteira» (p. 41).
Ao barroco foi António Ferra buscar certa pompa para a desmontar e
desfazer ironicamente, nomeadamente ao
minar modelos métricos, ao grafitar o luxo das imagens com o
corriqueiro, apostando em conceitos rebuscados e
títulos extensos: «de autor anónimo (sec. XVIII) publicado na Gazeta
«O Furjão» em depósito na biblioteca da
Junta de Freguesia de Albergaria de Loivã» (p. 33). Tudo isto é escárnio
da pompa e da circunstância, dos efeitos
supérfluos e palavrosos, da cagança espaventosa e da solenidade que,
em pleno século XXI, se conserva intacta
no espírito e nos comportamentos de uma horda de artistas eximiamente
distribuídos pelas diversas instituições nacionais.
Fique, a título de exemplo, a «efémera fama de um opinion maker»:
a efémera fama
tua alma aclama
na tua lama
a tarântula branca
anémona plana
numa feira franca
tua alma acalma
a efémera fama
abre o melodrama
alimenta a chama
da boca que trama
tua alma aclama
a tua boca brama
tua efémera fama