quinta-feira, 13 de maio de 2021

Sobre a minha poesia

 

Sobre a minha poesia - por Henrique Manuel Bento Fialho

 Dois livros de António Ferra , 

próximo convidado de Diga 33 – 

Poesia no Teatro. Dia 27, às 21h30, na sala
 Estúdio do Teatro da Rainha.


Dois livros bastante diferentes um do outro, publicados ambos este ano:


 “A Poesia Ri Unida” (Eufeme, Maio de 2022) e “Lengas e Narrativas”


 (Edições Húmus, Junho de 2022). Comecemos pelo primeiro. Tal como o


 título indica, num humor desimportantizante característico do autor,


 trata-se de uma reunião, não da obra anteriormente


 editada em livro, mas de poemas dispersos por revistas publicadas entre


 2009 e 2021. A excepção é um inédito


 intitulado “Dores”, poema pungente em que o mal-estar contagioso da


 actualidade vem à tona com fúria desmedida: «e eu sem potência para


 apagar filhos da puta» (p. 37). Não é comum nesta poesia temperaturas


 coléricas tão elevadas, sendo mais frequente o recurso ao riso enquanto


 sabotagem da realidade decadente e de


 um quotidiano pulverizado de personagens por vezes picarescas,

 

noutras ocasiões risíveis, amiudadamente


 desvalidas. Portanto, a poesia que ri neste volume transborda os


 domínios da ironia e da sátira reconhecíveis


 noutros momentos da obra de António Ferra (n. 1947). Mantém-se, no


 geral, a paisagem suburbana enquanto


 palco privilegiado das observações do sujeito poético, mergulhado num


 “modo funcionário de viver” onde


 recolhe quadros de uma actualidade estrangeirada. O teatro é o da


 «tirania / num campo de refugiados


 suburbanos» (p. 11), por vezes em poemas sequenciais que retratam


 com linguagem militantemente coloquial 


«o constrangimento dos sonhos, / a severidade das sombras» (p. 48).


Dá-se especial atenção nestes poemas aos pobres, aos excluídos, aos


 exilados, aos humilhados e ofendidos, a essa


 massa de gente infinda usada e usurpada pelas forças que dessa gente se


 servem esgotando-a, tornando-a


 impotente e incapaz. É curioso, mais ainda pela dispersão inerente ao


 conjunto, como em diversos destes poemas


 surge essa imagem de fraqueza que vai do sentimento de «culpa de não


 combater» (p. 11) à falta de «voz para gritar a injustiça» (p. 48),


 desembocando no apelo quase desesperado do poema “Contaminação”:


 «não feches o
 riso / que se abre nas tuas mãos abertas, / não feches o grito de revolta /


 quando a janela se abre aos odores de um


 fogo extinto» (p. 52). Uma dúvida a esclarecer: o riso é arma ao serviço


 da revolta ou solução para a impotência?


Bem diferente, em todos os aspectos, é o segundo livro acima aludido,


 introduzido por uma explicação prévia à


 laia de prefácio: «Trata-se de poemas com deliberada intenção de trazer


 à luz os mais sombrios actos criativos —


 e caritativos — das palavras, dançando ao ritmo cardíaco dos versos


 estampados, não negando, todavia, a forte



 influência de uma corrente barroca, e neoclássica, surrealmente


 presente nos critérios de recolecção dos versos


 que integram a antologia “lengas e narrativas”». Neste caso, o espaço de


 representação confunde-se com a pura


 experimentação formal. Mais maneiristas do que barrocos, estes poemas


 afirmam-se pelos desequilíbrios, pelos


 exageros expressivos, aqui grotescos, acolá burlescos, gozando de uma


 variedade (in)formal que vai da


 redondilha à canção. São experiências lúdicas com palavras, a linguagem


 poética cedendo ao gozo dos efeitos


 fonéticos — «a salsugem dos barcos / a penugem dos braços»


 — e polissémicos, jogo que não prescinde do seu


 inventário intensivo de caricaturas: «o pobre de porshe» (p. 10), 


«o rico sem cheta» (p. 12), «os ais obscenos / de suínos urbanos» (p. 31),


 «o mendigo enganado / o bardo e o frade / de cotão no umbigo / e


 espinho do cardo // o carneiro inchado / a donzela porreira / de seio


 fanado / e liga de freira // o cilício de nastro / o amante filtrado / o


 cu de alabastro / da alcoviteira» (p. 41).


Ao barroco foi António Ferra buscar certa pompa para a desmontar e


 desfazer ironicamente, nomeadamente ao


 minar modelos métricos, ao grafitar o luxo das imagens com o


 corriqueiro, apostando em conceitos rebuscados e


 títulos extensos: «de autor anónimo (sec. XVIII) publicado na Gazeta 


«O Furjão» em depósito na biblioteca da


 Junta de Freguesia de Albergaria de Loivã» (p. 33). Tudo isto é escárnio


 da pompa e da circunstância, dos efeitos


 supérfluos e palavrosos, da cagança espaventosa e da solenidade que,


 em pleno século XXI, se conserva intacta


 no espírito e nos comportamentos de uma horda de artistas eximiamente


 distribuídos pelas diversas instituições nacionais. 


Fique, a título de exemplo, a «efémera fama de um opinion maker»:


a efémera fama


tua alma aclama


na tua lama


a tarântula branca


anémona plana


numa feira franca


tua alma acalma


a efémera fama


abre o melodrama


alimenta a chama


da boca que trama


tua alma aclama


a tua boca brama


tua efémera fama