domingo, 30 de dezembro de 2007

Três linhas

1.
Numa repartição pública roubaram-lhe três linhas à escrita corrida onde se incluíam uma metáfora e outras três linhas ocultas

as pedras ficaram menos lisas neste meu quase último passeio. Poliam-me o olhar, as pedras, enquanto eu segurava o rosto, naquele equilíbrio entre o horizonte de lama e o recorte das casas numa colina de sal

A organização social da humanidade concentrada nos centros urbanos encontra-se reflectida nos mais pequenos sinais. Na verdade, nunca uma árvore pode ser derrubada, quando a música da manhã envolve o tronco, a copa, as folhas dispersas pelo céu, recortando fantasias, e um rasto de luz fica preso à sombra projectada no solo, pouco antes de o sol desaparecer completamente. As cidades estão poluídas de papéis sem cor, uns papelinhos aparentemente neutros que caem sobre as máquinas de fazer gelo situadas no exterior das estações e serviço que vendem gasóleo, mas também leite e pão, e gasolina e frescos muffins. Só quem não conhece a parte mais funda do poço dos desejos é capaz de trocar o néon pelo sol. Ainda assim, as manhãs vêm estimular o pensamento racional que amansa as dúvidas do corpo livre, corpo simultaneamente desejoso e apreensivo de confrontar-se com a regularização dos medos. Isso acontece frequentemente nas paredes mágicas que contornam os sentimentos mais comuns, tais como os estados de alma com uma ténue serenidade exposta às intempéries ou aos rostos amansados pela claridade.

2.
Numa repartição pública as moscas deixaram de perturbar o silêncio. Proibiram-lhes o vôo em zig-zag, bem diferente do vôo das aves de rapina, que é feito da seguinte maneira: a ave, lá de cima, faz desenhos circulares, enquanto vai filtrando a presa com o olhar. Depois aponta a um alvo e desce vertiginosamente até mergulhar sobre um pobre rato que pode mesmo situar-se entre os arquivos de cartórios notariais.
Havia um homem que tocava os tornozelos com os lábios e depois dizia que era de sabor amargo o rio de saliva que lhe escorria pelo peito. Isto tornou-se uma necessidade permanente, ao fim de alguns dias. Até que pensou mesmo que poderia morrer durante um destes exercícios. Quem pensa que está diminuído na sua saúde, na saúde das mãos que já não se mexem da mesma maneira, pode estar enganado. A organização social das cidades, deixou de ser uma panacéia. A questão é esta: de um campo interior as folhas voláteis dirigiram-se para o mar, mas para isso tiveram de atravessar um aglomerado de gente e de prédios onde o lixo se acumulava, indiferente às necessidades de respirar. A coca-cola já não tem qualquer responsabilidade sobre a proporção que as coisas tomaram, não há bodes expiatórios para as passagens subterrâneas. A destreza dos condutores produz efeitos rápidos porque as estradas se colam aos carros deslizantes, prateados na pista de mármore. Por vezes, algumas poças de água fazem travar o impulso automóvel, derrapagem breve por todos os trilhos.
Lá em baixo o lago, o Largo sem r, o pente sem dentes, a indecisão do cinéfilo perante a crítica ao filme. A praia estava iluminada pela luz artificial. Era uma luz crua, de um cinzento ácido, que tornava o areal mais limpo. Foi esta a imagem que Sobrevivente trouxe para casa.
Lá fora havia uma estrada com prédios do lado de lá. No primeiro plano as árvores estavam quase despidas, neste inverno onde ele procurava as palavras exactas para colocar no papel, a quatro. O computador ficou parado, apenas com o ruído continuo ao rá lanti. Agora, já se sente a falta do papel-papel

talvez os barcos de recreio tenham saído nas tardes de sexta-feira, quando existem expectativas para o fim de semana. Perdi-me a olhar aquela faixa de musgo que abrigava pássaros tardios, répteis da noite

3.
Três linhas, e era como se a terra ficasse húmida, em vez daquela terra parda e seca, antes da humidade de Novembro. O Sobrevivente cortara radicalmente com o campo, com o Verão silenciado, e ficou com as estrelas da noite que a cidade esconde. Que confusão esta, nem sequer a verdade num objecto tão simples como cinzeiro de prata sem história! Colam-se na parede as imagens esquecidas, já nem vale a pena medir o declive do terreno. Foi tudo um mal-entendido. Talvez alguém se vá embora de vez, conduzindo um Chevrolet de 1940, ou qualquer outro carro de carroceria a brilhar, cheia de cromados deslumbrantes, como num anúncio onde uma mulher exibe um sorriso de nácar.
De tanto esperar, tirando a senha, ficando com ela entre o indicador e o polegar, quando ia falar com alguém, ao Sobrevivente metia-lhe impressão não ter uma senha numerada das filas de espera na farmácia, nos notários, nas finanças, nos serviços de gás, de água, de telefone, enfim, uma segurança que se podia chamar social. Ele, o Sobrevivente, sentia entre as mãos a oportunidade a fugir-lhe. “Ah, queria falar, pago para isso, quanto é?”.

4.
Apercebo-me mais do sol, sinto-o com uma intensidade que não conhecia. É uma surpresa, apesar de saber que tem um prazo de validade impresso a letras quase ilegíveis, mal se vêem.

Três linhas, mais letra menos letra, trinta e duas palavras escritas na subversão da noite. Apenas essas, de relance, automáticas, pequeníssimo espaço onde Sobrevivente se mantinha vivo, ele, um homem perseguido que se queria refugiar nas montanhas vivas, qual guerrilheiro das palavras. E viver do que a natureza lhe dava, como já antes acontecera, durante cerca de quatro meses, num país de sonho tropical onde a falta de chuva o levara ao desespero durante algum tempo, embora soubesse que a respectiva época haveria de realizar-se, ainda que tardiamente. Até que uma noite, quase madrugada, ela desatou a cair como Deus a dava, com o peso daquelas mangueiradas naturais a entranharem-se na terra, a escorrerem de um poilão contente, a regarem à bruta a bananeira plantada em frente da sua casa. Saiu porta fora e ali ficou a deixar que a água lhe atravessasse os ossos e lhe lavasse a alma de tanto esperar, de tanto desejar.
O desejo é um estado que inquieta e nos faz suspensos de qualquer coisa que há-de vir do céu, que é para onde olhamos quando queremos saber “para quê isto?”. Sabemos, então, que seremos dissolvidos na lama de arrasto, nas pedras, nas raízes das árvores que seguram a montanha onde os guerrilheiros lutam por uma libertação final e absoluta.

5.
Até na cela colectiva Sobrevivente conseguia escrever as três linhas necessárias para sustento diário. Não mais do que três linhas. Os outros dois companheiros de cela gritavam de inveja sem saber que a tinham. Queriam era desgovernar-lhe a mão ligada a uma esferográfica lenta. O maior, o dono da cela, tinha olhos redondos de peixe, cara redonda também, corpanzil para cem quilos, tatuagem no braço esquerdo: um cobra de língua bífida, a rastejar. O mais novo era magro demais, com olhar de gato agressivo, saltitante até às grades. Cortava as palavras de Sobrevivente, censurava-as com a respiração, com os olhos, com os gestos, nas voltas inquietantes na cama do beliche. Sobrevivente achava bem, mas sabia que a sua luta era infindável. Que mesmo quase sem privacidade podia inventar as três linhas diárias num curto espaço de tempo. Isto era assim devido à privacidade quase. Dos outros dois nada se sabe, mas de Sobrevivente sabe-se que foi detido, uma tarde, numa repartição pública cujo serviço mais especificado não será aqui referido, por uma questão de privacidade. Sobrevivente exaltara-se, de facto, quando se sentiu esquecido e abandonado, e feriu com o olhar a funcionária, porque os olhares podem ser tão violentos como as palavras e os gestos. Por isso foi preso e condenado. Acabou por perder amigos e família, dinheiro e prestígio social, apenas porque não distinguiu a funcionária etérea da mulher-quimera que o torturara durante dois anos e meio, quando chegava a ficar esticado numa corda da marquise à espera de ser confundido com roupa a secar, só para não ser notado, sobretudo por essa mulher que amava. Mas ela não o amava, apenas se servia da sua frágil genitalidade, do seu aspecto escravatário que lhe dava mesa e tratamento de roupas em trocas de cama lavada.

6.
Depois de fazer os tais desacatos na repartição pública (alguns insinuam tratar-se de uma repartição de finanças, já que as situações tributárias sempre se associaram à culpa) foi levado pela polícia. In loco. A funcionária que o iria atender era uma mulher magra, com cerca de quarenta anos, cabelo louro altamente artificial, lábios roxos e vestido negro, como se fosse para uma discoteca ou para um “party pris” e não para atender homens e mulheres que faziam bicha contida, em purra, aqui e ali.
Ao começo da noite Sobrevivente procurava as palavras que lhe começavam a escassear à medida que o seu pensamento se esvaziava, devido, em parte, à falta de uso adequado. Porque eram sempre as mesmas palavras copiadas ao longo dos anos, num caderno de cópia mental, marginalizado. Mais do que uma vez lhe faltaram as palavras e ia morrendo de solidão. Só não morreu, porque vislumbrou através das grades a copa de um plátano com algumas folhas amareladas, folhas de Outono num resto de sol da tarde. Esta sua não-morte deveu-se ainda às três linhas que conseguia escrever, pois assim recuperou uma certa individualidade. Sobrevivente escrevia as coisas que precisava de fazer para sobreviver, sempre no gume da navalha. Tanto podia escrever sobre as folhas de plátano, como podia escrever sobre o medo de morrer de medo, ou sobre as surtidas nocturnas que desejava fazer através de um amontoado de palavras, embora soubesse que isso não passava de um sucedâneo. Desesperadamente, então, acumulava imagens na cabeça só para entreter, género assalto a repartição pública para registo de dados, falsificação de senhas de espera, é de cétara. E dava-se a estes luxos de liberdade mental nos intervalos em que o gordo e o magro lhe davam certo descanso à fantasia, em vez de massacrá-lo com os cigarros, o negócio dos mais estranhos objectos, tipo canetas bic, ou o aspecto asseado das camas feitas para que os guardas não o chateassem na revista aleatória.

7.
Só muito mais tarde, naquela prisão, ele pôs seriamente a hipótese de a mulher da repartição pública ser a mesma que lhe aparecia nos sonhos em que se expunha na marquise, na corda bamba da sorte. A mulher que, ao baixar-se, deixava ver de costas uma calcinha mínima, um fio dental atravessando-lhe a nádega em ganosa, estereotipando-lhe desejos. Depois que se perdera com esta mulher, real na noite, nunca mais teve descanso. Com ela já nem se importava de morrer desgraçadamente, deixando emprego, família e amigos, prestígio social.
E foi o que aconteceu.

Três linhas:
as pedras ficaram menos lisas neste meu quase último recreio. Os muros defendiam-me da luz, agora desnecessária. Comecei a entender-me com o olho de peixe e o magrinho saltitante. Fizemos um pacto de cordialidade por escrito.


(adapatação de "O Sobrevivente", publicado em "Olhar o Silêncio")